sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O cárcere de Ivan

As muletas descansam sobre o sólido banco do calçadão, onde um olhar cansado e melancólico observa o caminhar esbelto dos pedestres, e ao mesmo tempo relembra os tropeços do passado conturbado. Em vigília dos automóveis a sua frente, espera o tempo passar, e conta as poucas moedas que ajunta ao longo do dia com esmero.
José Roberto da Silva, 46, “cabeludo”, “perneta”, “aleijado”, ou apenas Ivan, como gosta de ser chamado, não por um propósito ao certo, mas na rua ninguém possui nome fixo, da mesma forma que a vida varia, os nomes variam. Talvez o nome de batismo de rua até se enquadre bem, Ivan, de origem russa, fiel, carinhoso. Era assim que ele era em Itapipoca, cidade do interior, a 135 quilômetros de Fortaleza. Logo ao nascer, já sentiu a primeira angústia, ao ser condenado à morte pela avó, que não aceitava o bebê originado de um adultério. O pai, casado, se envolveu com uma garota, sua mãe, essa fugiu para Sobral após o nascimento do filho, na conservadora Itapipoca não dava mais. O pai o abandonou.
O menino cresceu com a avó, que acabou o acolhendo, até os dez anos, quando essa faleceu, teve que arrumar suas malas, iria para Fortaleza, morar com a tia no bairro Jardim Iracema, pouco a pouco ela virava sua nova mãe, que mais tarde se casaria com seu novo “pai”. Bons tempos tomaram sua jornada. Gostava de jogar bola e brincar pelas ruas com os amigos, até a hora que a nova mãe chegava a casa, quando ele corria para pegar a vassoura e deixar tudo limpinho. Disciplinado, prestativo, um bom garoto.
A escola ia bem, a nova mãe zelava sempre pelos estudos, queria ver o “filho” vencendo na vida, já o “pai”, alcoólatra, nunca daria um lápis para o menino, gostava mesmo do trabalho, do dinheiro surgindo na hora. Não demorou muito para Ivan começar no batente, oficina de carros, trabalho duro, porém honesto, ajudava nas despesas da casa e ainda ficava com um pouco, nada demais.
A adolescência era como a de qualquer um, agitada, cheia de novidades, mas sempre focada e trilhada de maneira próspera. Isso até o momento em que os problemas começariam, as drogas. Ivan nunca gostou daquele mundo, ficava de fora, sabia até dos riscos, mas seu chefe no trabalho não se importava muito, era o dono da oficina, dependente da maconha, todos os dias. Pouco a pouco o garoto de 16 anos era convencido a se libertar, ou melhor, a se encarcerar, a romper a película da sabedoria e se entregar à ilusão das drogas, e assim aconteceu.
Abandou os estudos no ensino médio, faltava pouco para se formar, caiu na obscuridade, trocou suas companhias, passou a ser um freqüentador assíduo da noite. Mesmo assim conseguiu trabalho, virou sapateiro e até se casou com 19 anos. Teve seu primeiro filho, Felipe Matias.
Mesmo com as drogas e a noite, ele conseguia levar sua vida e sustentar sua esposa e seu filho, e quando tudo parecia calmo e constante, eis que surge o crack. O crack aprisiona, escraviza, derruba tudo, a família, o trabalho, os sonhos. Traiu sua mulher, saiu de casa, foi para a rua, nunca mais viu o filho.
Casou-se de novo, agora com uma menina, apenas 12 anos, teve mais três filhos, Lucas, Luan, Luana. Morou com a nova família por um bom tempo, mas a droga sempre foi mais forte, não trabalhava, era dependente, deixou novamente sua casa.
Ivan vagava pelas ruas, com nada nos bolsos, pouco na mente além do vício pelo crack, chegou à beira-mar. Aquele ponto nobre da cidade oferecia muitas formas de se manter, conheceu o dono de uma fileira de vagas de estacionamento, teoricamente deveriam ser públicas, mas não é assim que funciona na rua. Começou a trabalhar de flanelinha, tirava 20 a 25 reais por dia, 30 a 40 quando lavava os carros.
A lavagem sempre rendia um dinheiro a mais, isso o motivava, e foi lavando um carro que sofreu um corte em sua perna, no começo parecia algo passageiro, não renderia muitos problemas, mas a falta de cuidado agravou a situação, a ferida foi infeccionada, tomou toda sua perna, as consequências foram graves. O movimento estava prejudicado, passou a usar muletas e uma faixa para esconder o corte profundo.
O cabeludo continua na luta, com o pouco dinheiro que consegue, se alimenta, compra medicamentos e continua no crack.
“Eu queria sair, mas não consigo, é muito difícil, às vezes eu tô aqui e chega o pessoal oferecendo, ai você acaba indo. Queria voltar pra casa, mas não dá, quem vai querer um drogado, vagabundo? Eu queria deixar essa vida, queria ver meus filhos de novo, ter um lugar pra morar...”
Deixar as drogas e ter um lugar para morar, um “barraco”, como ele mesmo diz, apenas isso ele pede, apenas isso ele precisa. Por enquanto passará as noites ali, no banheiro da lanchonete, onde espera a vida passar e pensa no que o futuro pretende oferecer.

José Roberto da Silva, 46 anos, pai de quatro filhos, ensino fundamental completo, assistente de mecânico, sapateiro, dependente químico, deficiente físico, flanelinha, lavador, carinhoso, brasileiro, Ivan. Ele não nasceu na rua.

4 comentários:

  1. Muito Bom Leo, muito bem escrito! Parabéns por essa materia!

    Flavio Silveira.

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  2. Pô cara, vai em frente! Esse tipo de abordagem aí revela bem a identidade perdida de uma pessoa marginalizada pela maioria.

    Rodrigo Santiago

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  3. Obrigado Rodrigo, tentarei fazer mais matérias do gênero.

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