sábado, 2 de dezembro de 2023

A libertadora certeza de que não sei de nada

Desde o fim do tempo de escola lembro que passei a me interessar mais por entender como o mundo funcionava. Não tanto o mundo natural, mas o social. Isto me aproximou das ideias políticas, sociais e econômicas, além da história, que diferentemente do que acontecia no período escolar, passou a me atrair de uma forma mais orgânica, de um interesse que realmente vinha do meu ser, e não de um professor ou um ambiente de sala de aula.

Neste tempo, mergulhei principalmente no que chamo de “esquerdosfera”, todo o universo de interpretação dos fatos sociais e históricos sob a ótica da esquerda política e acadêmica, que entendo como tendo sua grande base fundamentada por Marx e Rousseau. Este é o caminho natural de qualquer jovem que se interessa por entender a grande estrutura social em que vive, e é por isso que a grande maioria das pessoas que mergulham um pouco no assunto se tornam o que chamaríamos de “esquerdistas”. A interpretação do mundo pela ótica destas ideias é extremamente atraente, simples de entender e fornecedora de muitas respostas. E como queremos respostas quando estamos curiosos!

Após este período de iniciação passei a me sentir muito seguro sobre vários assuntos e estava mergulhado em idealismo. Porém não é da minha personalidade se acomodar na “segurança”. Aproveitando o primeiro ano na faculdade de economia, passei a me interessar por pensadores que atacavam frontalmente o que eu acreditava, afinal eles deveriam existir, não é mesmo? Foi então que conheci os liberais, cheios de argumentos e ideias muito interessantes que colocavam em dúvida tudo que acreditava. De repente Marx e Rousseau não eram tão grandes assim, e Adam Smith e Hobbes passavam a chamar muita atenção.

Eu poderia passar horas escrevendo sobre todo este conflito de ideias que passei a viver nesta época, mas este não é o assunto do texto. O ponto importante foi que nesta época eu me deparei com uma ideia muito marcante encontrada na mentalidade de muitos liberais, mas de um em especial, Friedrich Hayek, que não era nada mais que uma simples constatação: o conhecimento está disperso na sociedade e indivíduos sabem pouco, muito pouco.

Este pensamento foi um meteoro na minha jornada de compreensão do mundo. Colocado da forma acima, parece simples, mas na verdade ele traz uma série de reflexões sobre o mundo moderno e a “pretensão do conhecimento”, como o próprio Hayek chamava, chegando a escrever um livro intitulado “A Arrogância Fatal”, que em outras coisas descrevia como políticos e planejadores sociais tentavam solucionar os problemas humanos e sociais e quase sempre fracassavam em suas empreitadas, não apenas não solucionando os problemas, como os agravando.

E Hayek não era qualquer pensador, era um ganhador de Prêmio Nobel de Economia. Nada mais nada menos que um vencedor de Prêmio Nobel tinha como uma de suas grandes mensagens, em outras palavras, o seguinte: nós não sabemos nada! É claro que ele não queria dizer que não sabemos nada literalmente, o que ele queria dizer é que vivemos em um mundo complexo, e muitas das ideias decoradas de sofisticado racionalismo não são mais que especulações ou uma parte muito superficial do conhecimento de determinado assunto. Hayek enxergava em nosso tempo uma certa arrogância, uma tendência irresistível das pessoas em querem ser especialistas em assunto que nem os especialistas dominam completamente.

Partindo desta premissa, passei a perceber que aquela máxima popularmente conhecida fazia muito sentido: “quanto mais busco o saber, menos sei”. Ao analisar os assuntos que me dispus a me aprofundar durante toda a minha vida, percebi que quanto mais adentrava naquele campo, mais me sentia ignorante, mais me sentia inseguro sobre a verdade e a exatidão dos fatos. Neste caminho, algo solidificou ainda mais esta ideia em meu íntimo: o estudo da estatística, matéria obrigatória nos cursos de economia. Ao entender como os estudos, pesquisas e levantamento de dados são feitos, ficou ainda mais claro para mim como tudo é tão frágil, tão aberto a interpretações e manipulações, e como nossa sociedade neste século XXI se tornou um show de horrores estatísticos com pessoas de todos os tipos usando dados soltos sobre determinados assuntos para “provarem” seus pontos e posarem de detentoras do conhecimento.

Mais recentemente fiquei estarrecido com a pandemia de Covid-19 que transformou a “ciência” em uma ferramenta de embate político. Milhares de pessoas que mal sabem descrever o que é ciência e método científico, passando a dizer que “acreditam na ciência”, como se a ciência fosse uma fonte de respostas seguras e imutáveis que devem ser assimiladas e aceitas sem questionamentos. Que sacrilégio. Ora, a grande característica da investigação científica é justamente o ceticismo, a insegurança, a cautela nas observações e processamento dos dados. A ciência é tudo de incerteza e praticamente nada de segurança. Conclusões científicas seguras somente são consideradas seguras após um grande período de aceitação unânime, e ainda assim qualquer cientista minimamente honesto sabe que a mais segura das conclusões pode ser desafiada, questionada e refutada, e foi assim que a ciência se desenvolveu durante seus séculos mais nobres em nossa história. Como uma grande arena de batalha, em que visões aceitas eram refutadas e substituídas do dia para a noite. A instabilidade e a imprevisibilidade foram as bases do modelo científico moderno, e foi justamente seu caráter incerto que o tornou alvo de ataques por parte daqueles que desejavam um mundo estável baseado nos preceitos e tradições religiosas.

Então como, diante de todos esses fatos, políticos e pessoas aleatórias sem nenhuma formação científica passaram a dizer que “apoiam a ciência”? Ora, se você apoia a ciência você apoia a incerteza! E não apenas isso, em geral o que observo em nossos dias é uma pretensão do conhecimento implacável a avassaladora nos mais diferentes campos: nutrição, fármacos, atividades físicas, psicologia etc etc. As pessoas hoje em dia estão achando que encontraram as respostas para tudo e que uma está mais certa que a outra. Parece um grande hospício de senhores e senhoras certezas.

Entendam: vocês não sabem de nada! Este mundo e a maioria dos assuntos que vocês discutem é extremamente complexo, as variáveis são muitas, a previsibilidade é quase inexistente, e este é o mundo como ele é. Este lugar incerto que está mais para uma grande aventura, cheia de surpresas que moldarão seu caráter em questão de horas. Libertem-se! Libertem-se da pretensão do conhecimento! Tirem este fardo de suas costas e vivam uma vida leve! Sejam humildes! Abracem o desconhecido! Digam para si mesmos: eu sei pouco, muito pouco, e está tudo bem!

Como é libertador aceitar a imensidão de variáveis desde mundo, do ser-humano, das sociedades humanas, da biologia, da química, da história, da psicologia, da astronomia. Como é fascinante saber tão pouco e poder investigar os fatos sem querer uma resposta final para tudo. A vida é uma grande incerteza, e é nesta incerteza que nos entregamos e mergulhamos na maravilhosa obra do criador. Se ele quisesse que soubéssemos tudo, provavelmente nos faria diferentes, não tão pequenos e limitados.