sábado, 2 de dezembro de 2023

A libertadora certeza de que não sei de nada

Desde o fim do tempo de escola lembro que passei a me interessar mais por entender como o mundo funcionava. Não tanto o mundo natural, mas o social. Isto me aproximou das ideias políticas, sociais e econômicas, além da história, que diferentemente do que acontecia no período escolar, passou a me atrair de uma forma mais orgânica, de um interesse que realmente vinha do meu ser, e não de um professor ou um ambiente de sala de aula.

Neste tempo, mergulhei principalmente no que chamo de “esquerdosfera”, todo o universo de interpretação dos fatos sociais e históricos sob a ótica da esquerda política e acadêmica, que entendo como tendo sua grande base fundamentada por Marx e Rousseau. Este é o caminho natural de qualquer jovem que se interessa por entender a grande estrutura social em que vive, e é por isso que a grande maioria das pessoas que mergulham um pouco no assunto se tornam o que chamaríamos de “esquerdistas”. A interpretação do mundo pela ótica destas ideias é extremamente atraente, simples de entender e fornecedora de muitas respostas. E como queremos respostas quando estamos curiosos!

Após este período de iniciação passei a me sentir muito seguro sobre vários assuntos e estava mergulhado em idealismo. Porém não é da minha personalidade se acomodar na “segurança”. Aproveitando o primeiro ano na faculdade de economia, passei a me interessar por pensadores que atacavam frontalmente o que eu acreditava, afinal eles deveriam existir, não é mesmo? Foi então que conheci os liberais, cheios de argumentos e ideias muito interessantes que colocavam em dúvida tudo que acreditava. De repente Marx e Rousseau não eram tão grandes assim, e Adam Smith e Hobbes passavam a chamar muita atenção.

Eu poderia passar horas escrevendo sobre todo este conflito de ideias que passei a viver nesta época, mas este não é o assunto do texto. O ponto importante foi que nesta época eu me deparei com uma ideia muito marcante encontrada na mentalidade de muitos liberais, mas de um em especial, Friedrich Hayek, que não era nada mais que uma simples constatação: o conhecimento está disperso na sociedade e indivíduos sabem pouco, muito pouco.

Este pensamento foi um meteoro na minha jornada de compreensão do mundo. Colocado da forma acima, parece simples, mas na verdade ele traz uma série de reflexões sobre o mundo moderno e a “pretensão do conhecimento”, como o próprio Hayek chamava, chegando a escrever um livro intitulado “A Arrogância Fatal”, que em outras coisas descrevia como políticos e planejadores sociais tentavam solucionar os problemas humanos e sociais e quase sempre fracassavam em suas empreitadas, não apenas não solucionando os problemas, como os agravando.

E Hayek não era qualquer pensador, era um ganhador de Prêmio Nobel de Economia. Nada mais nada menos que um vencedor de Prêmio Nobel tinha como uma de suas grandes mensagens, em outras palavras, o seguinte: nós não sabemos nada! É claro que ele não queria dizer que não sabemos nada literalmente, o que ele queria dizer é que vivemos em um mundo complexo, e muitas das ideias decoradas de sofisticado racionalismo não são mais que especulações ou uma parte muito superficial do conhecimento de determinado assunto. Hayek enxergava em nosso tempo uma certa arrogância, uma tendência irresistível das pessoas em querem ser especialistas em assunto que nem os especialistas dominam completamente.

Partindo desta premissa, passei a perceber que aquela máxima popularmente conhecida fazia muito sentido: “quanto mais busco o saber, menos sei”. Ao analisar os assuntos que me dispus a me aprofundar durante toda a minha vida, percebi que quanto mais adentrava naquele campo, mais me sentia ignorante, mais me sentia inseguro sobre a verdade e a exatidão dos fatos. Neste caminho, algo solidificou ainda mais esta ideia em meu íntimo: o estudo da estatística, matéria obrigatória nos cursos de economia. Ao entender como os estudos, pesquisas e levantamento de dados são feitos, ficou ainda mais claro para mim como tudo é tão frágil, tão aberto a interpretações e manipulações, e como nossa sociedade neste século XXI se tornou um show de horrores estatísticos com pessoas de todos os tipos usando dados soltos sobre determinados assuntos para “provarem” seus pontos e posarem de detentoras do conhecimento.

Mais recentemente fiquei estarrecido com a pandemia de Covid-19 que transformou a “ciência” em uma ferramenta de embate político. Milhares de pessoas que mal sabem descrever o que é ciência e método científico, passando a dizer que “acreditam na ciência”, como se a ciência fosse uma fonte de respostas seguras e imutáveis que devem ser assimiladas e aceitas sem questionamentos. Que sacrilégio. Ora, a grande característica da investigação científica é justamente o ceticismo, a insegurança, a cautela nas observações e processamento dos dados. A ciência é tudo de incerteza e praticamente nada de segurança. Conclusões científicas seguras somente são consideradas seguras após um grande período de aceitação unânime, e ainda assim qualquer cientista minimamente honesto sabe que a mais segura das conclusões pode ser desafiada, questionada e refutada, e foi assim que a ciência se desenvolveu durante seus séculos mais nobres em nossa história. Como uma grande arena de batalha, em que visões aceitas eram refutadas e substituídas do dia para a noite. A instabilidade e a imprevisibilidade foram as bases do modelo científico moderno, e foi justamente seu caráter incerto que o tornou alvo de ataques por parte daqueles que desejavam um mundo estável baseado nos preceitos e tradições religiosas.

Então como, diante de todos esses fatos, políticos e pessoas aleatórias sem nenhuma formação científica passaram a dizer que “apoiam a ciência”? Ora, se você apoia a ciência você apoia a incerteza! E não apenas isso, em geral o que observo em nossos dias é uma pretensão do conhecimento implacável a avassaladora nos mais diferentes campos: nutrição, fármacos, atividades físicas, psicologia etc etc. As pessoas hoje em dia estão achando que encontraram as respostas para tudo e que uma está mais certa que a outra. Parece um grande hospício de senhores e senhoras certezas.

Entendam: vocês não sabem de nada! Este mundo e a maioria dos assuntos que vocês discutem é extremamente complexo, as variáveis são muitas, a previsibilidade é quase inexistente, e este é o mundo como ele é. Este lugar incerto que está mais para uma grande aventura, cheia de surpresas que moldarão seu caráter em questão de horas. Libertem-se! Libertem-se da pretensão do conhecimento! Tirem este fardo de suas costas e vivam uma vida leve! Sejam humildes! Abracem o desconhecido! Digam para si mesmos: eu sei pouco, muito pouco, e está tudo bem!

Como é libertador aceitar a imensidão de variáveis desde mundo, do ser-humano, das sociedades humanas, da biologia, da química, da história, da psicologia, da astronomia. Como é fascinante saber tão pouco e poder investigar os fatos sem querer uma resposta final para tudo. A vida é uma grande incerteza, e é nesta incerteza que nos entregamos e mergulhamos na maravilhosa obra do criador. Se ele quisesse que soubéssemos tudo, provavelmente nos faria diferentes, não tão pequenos e limitados.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Nossa vida em Camphill Village Copake


Após alguns meses desde o último post deste blog, retorno para contar um pouco da experiência que eu e minha esposa, Iasmim, estamos vivendo desde que deixamos o Brasil para passar uma temporada no EUA. Escrevo neste momento de nosso aconchegante quarto em Tamarack, uma das várias casas do Camphill Village Copake, a maior comunidade Camphill da América do Norte, onde vivem cerca de 235 pessoas distribuídas em cerca de 300 hectares de lindas terras ao norte do estado de Nova York.

Desde que chegamos aqui ficamos impressionados com o tamanho e a infraestrutura deste Camphill, de dimensões muito diferentes das do que vivi na Escócia em 2011 e 2012. São várias casas, vários workshops, clínica médica, centro administrativo, centro de convivência com café e loja, fazenda com grande produção diária de carne e laticínios, centro de eventos, todo tipo de maquinário para produção agropecuária, campos férteis para agricultura e tudo que podemos imaginar de necessário para uma comunidade vibrante e praticamente autossustentável.

Para quem é novo em meu blog e não viu outros posts, uma comunidade Camphill é um lugar criado para a inclusão social e profissional de pessoas com necessidades especiais. Essas pessoas podem viver aqui a vida inteira e conquistam um nível de autonomia e dignidade que sequer conseguimos imaginar muito bem no Brasil. Nós vivemos em uma casa com 5 pessoas especiais de diferentes diagnósticos.


Como as experiências que temos no Brasil com pessoas especiais costumam ser raras e até pobres, é difícil explicar a um brasileiro a realidade de uma comunidade Camphill, um lugar incrível que só conseguimos conceber realmente quando estamos nele. Viver e trabalhar com essas pessoas é extremamente gratificante, estimulante e divertido. E é por isso que cada vez mais brasileiros vão passar uma temporada em uma comunidade Camphill ao redor do mundo. Aqui em Copake, além de mim e Iasmim, temos mais 3 brasileiros. Porém eles vêm e vão, e muitos passaram por aqui em outros anos.

Todos que se inscrevem para viver aqui e são aceitos, são alocados em algum local de trabalho. No meu caso eu me tornei um fazendeiro integral, trabalhando na fazenda tanto de manhã quanto à tarde. Um trabalho desafiador que tenho me identificado cada vez mais, havendo sempre algo novo para aprender todos os dias. Já a Iasmim foi alocada em duas posições diferentes, pela manhã ela cuida da casa e geralmente faz almoço, e pela tarde ela trabalha em um workshop chamado “Estate”. Esta é um workshop difícil de explicar aos brasileiros, mas no geral é ligado a uma longa lista de trabalhos ao ar livre, como corte de grama, corte de madeira com serra elétrica, armazenamento de madeira para o inverno, produção de Maple Syrup, e serviços que exigem ação física e operação de máquinas.


Além do trabalho em nossos workshops, também trabalhamos na casa onde moramos, tanto com atividades domésticas comuns como limpeza e preparação de refeições, tanto com os cuidados aos residentes especiais. Em uma comunidade Camphill aprendemos um pouco de tudo, e é por isso que considero este local um dos melhores lugares para alguém se desenvolver como ser-humano. Este é um lugar da prática e você está sempre com as mãos e a mente ocupadas com diferentes tarefas. Em verdade muitos brasileiros que chegam aqui acostumados com uma vida de estudos ou trabalho em escritório, geralmente contando as horas para irem para casa, ficam impressionados com o quanto se desenvolvem e o tanto de coisas que podem fazer durante um dia.

Além de uma vida muito ocupada com todas as responsabilidades que lhe são atribuídas, quem vive e trabalha em Copake usufrui de um cenário natural exuberante de morros, florestas, rios, riachos, lagos e animais. O contato com a natureza é total e a qualidade de vida imensurável, totalmente diferente da realidade urbana de se viver em uma grande metrópole brasileira, como Fortaleza, de onde viemos. Desde que chegamos aqui nossa saúde nunca foi tão boa. A minha sempre foi boa, mas melhorou ainda mais. Já Iasmim praticamente se curou de uma série de problemas pequenos que tinha, como gripes frequentes, crises alérgicas, entre outras coisas que eram um incômodo constante no Brasil.

Estamos nos aproximando de completar 6 meses neste lugar incrível e teria muito o que falar sobre o Camphill, a América, nossos passeios na região, entre outros assuntos, mas deixarei tudo isso para próximas oportunidades. Meu objetivo neste post era apenas lhe dar uma breve introdução sobre onde estamos e o que estamos fazendo, e a partir disto poderei puxar mais assuntos. Até breve.


Tamarack, nossa casa

Fim de tarde tirando leite ao ar livre

Desbravando trilhas e cuidando dos animais da fazenda

terça-feira, 6 de junho de 2023

Simplificar sua vida é uma questão de saúde mental

Quando somos crianças os adultos nos colocam para passar várias horas de nossos dias em lugares onde supostamente aprendemos a como entender o mundo, assim como sobreviver nele (pelo menos a intenção é mais ou menos esta). Este lugar se chama escola. Na escola recebemos lições e informações que remetem ao conhecimento adquirido da humanidade até aquele momento. Alguns tendem a acreditar que as principais ferramentas necessárias para esta vida são passadas ali mesmo, bastando a nós apenas adaptar tudo aquilo nas circunstâncias que iremos observar ao longo de nossas jornadas.

O problema desta lógica é que ela parece partir de uma impressão de que o mundo é mais ou menos estável e, portanto, nada de surpreendente ou muito inesperado deverá acontecer. Mas a verdade é que este mundo, assim como esta vida, são consideravelmente imprevisíveis, principalmente no século XXI. Hoje nos deparamos com mudanças aceleradas, todos os dias novas informações, tecnologias e descobertas surgem, deixando-nos um pouco deslocados ante a ausência de um solo firme onde podemos nos sustentar por um longo tempo.

Uma grande mudança que nunca nos prepararam para lidar foi a ascensão imponente e definitiva de uma vida complexa amparada pela popularização da internet e, consequentemente, dos eletrônicos que a operacionalizam, como os smartphones. De repente passamos de uma realidade moderadamente complexa para uma realidade hiper-complexa. Aplicativos, redes sociais, sistemas, ferramentas de comunicação, globalização etc. São vários os elementos que inundaram nosso cotidiano até o cenário atual, e não, nós não estávamos preparados para isto.

Testemunhamos uma escalada do estresse, da ansiedade, da agitação mental e da frustrante sensação de que temos tudo, mas não temos nada, de que somos privilegiados, mas ao mesmo tempo amaldiçoados, de que somos como o Smeagle de “Senhor dos Anéis”, fascinados com os poderes do anel, mas sem perceber o mal que nos faz. Ficamos perdidos neste mar de novidades. E nosso cérebro, coitado, está muito longe de assimilar tudo, até porque talvez nem seja possível.

Nossa incapacidade de lidar com tanta complexidade nos deixa angustiados, pois pensamos que somos os únicos a estarem assim, acreditamos que talvez sejamos incapazes, pois todos que observamos ao redor parecem estar muito bem, mas isto não é verdade. Os níveis podem ser diferentes, mas no geral estamos todos hiper-estimulados, hiper-agitados, e consequentemente cansados. E este não é um cansaço banal, é um cansaço que nos paralisa, nos esgota, e nos dá a sensação de que o prazer das coisas simples fora afastado. Caímos em uma espécie de embotamento, e por mais que tentemos, não é tão fácil sair dele.

Mas não desanime, não pense que as coisas podem ficar assim para sempre, pois seu poder de reverter este processo continua aqui. Sabe quando seu quarto está totalmente bagunçado e parece não haver esperança para que as coisas sejam colocadas em ordem? Você pode até procrastinar para organizá-lo, mas sabe que à medida em que começa a colocar cada item em seu lugar, as coisas passam a acontecer, e sua capacidade de reverter o processo é real. O quarto bagunçado incomoda e nos entristece porque a complexidade nos pesa, tudo está fora de lugar, não há ordem, não há previsibilidade, a vida fica caótica e improdutiva. Quando passamos a organizá-lo, é como se contra-atacássemos o caos com um choque de ordem, ou melhor, de simplicidade. Perceba, quanto mais organizado um ambiente, mais simples ele parece que é. A simplicidade nos traz leveza, tranquilidade e, sem o incômodo do estresse de uma bagunça, sentimo-nos livres.

A sua mente é como um quarto a se manter organizado: quanto mais elementos e agitação, mais difícil de processar e colocar cada coisa em seu lugar. Imagine, por exemplo, as pessoas que logo que acordam, abrem os stories ou o reels do Instagram e em um espaço de cerca de 5 minutos são bombardeadas com uma variedade indescritível de imagens, sons, cores, questões, que ativam de repente diferentes áreas do cérebro que tinham acabado de “descansar” ao longo da noite. Esta pessoa começará o dia com um nível de caos mental que deixará tudo mais difícil para ela nas próximas horas, fazendo com que tarefas e questões simples se transformem em fontes de irritabilidade e insatisfação, dando a ela a impressão de que é incapaz, nervosa e “não ajustada a este mundo”. Esta prática ao longo de semanas ou meses podem facilmente conduzir uma pessoa saudável a cenários de transtornos mentais que farão de sua vida uma experiência muito mais complicada.

É claro que o exemplo do uso de rede social de amanhã é só um em meio a tantos outros que temos hoje em dia com a ascensão dos smartphones, sendo que o ponto principal que trago é que nós temos que ajustar nossa capacidade humana a esta nova situação civilizacional. Nossa capacidade de processamento é limitada! E atualmente a diversidade de elementos sensoriais ao nosso redor é mais que suficiente para que fiquemos loucos. Isto não é uma bobagem, é algo muito sério que está destruindo vidas, e precisamos racionalizar esta realidade. Quem não souber auto simplificar sua vida, pode até viver muito fisicamente, mas terá uma longa existência de sofrimento sem conseguir disciplinar seus próprios pensamentos.

Use menos celular, não abuse de filmes e séries, priorize atividades na natureza, aprenda a se desligar, pratique higiene mental, saiba o seu limite de absorção de informações para ficar bem, evite noticiário, se política lhe fizer mal, evite-a também, pratique esportes por prazer e não para as redes sociais, afaste-se de atividades muito artificialmente dopaminérgicas, e lembre-se, se você achar que está perdendo informações muito valiosas ao se desconectar, ignore, isto é falso, você não tem que saber tudo que está acontecendo no mundo. Há milhões de coisas acontecendo, você não foi criado biologicamente para processar tudo isso, e sim para processar suas ações individuais e cooperar em comunidade com seus semelhantes mais próximos. Você faz mais colocando o lixo para fora do que assinando um manifesto contra a caça japonesa de baleias do Pacífico.

Faça um teste, vá para algum lugar afastado da cidade, em meio à natureza, pode ser na praia, no campo ou na montanha, fique pelo menos 24 horas sem internet. Se você não conseguir fazer isso, se sentindo angustiado, provavelmente está doente. Então antes de achar que tem problemas psiquiátricos, tente limpar e simplificar sua vida, uma simples mudança de hábitos na forma como você permite que o mundo exterior acesse seus pensamentos, pode lhe poupar de longos tratamentos e ideias confusas sobre você mesmo.

As melhores coisas da vida somente são percebidas quando estamos com nossas mentes limpas para enxergá-las. Aqueles muito submersos no caos das distrações humanas acabam perdendo o espetáculo que passa diante de seus próprios olhos, verdadeiros prazeres que são ignorados por aqueles que estão soterrados nos prazeres da artificialidade, que sempre nos dão uma rápida ilusão de bem-estar, mas que logo se revelam sensações destrutivas que não nos levam a lugar algum. Simplifique para enxergar, e enxergue para ser livre.


quarta-feira, 31 de maio de 2023

O que mais valorizo em países livres

Vez ou outra me pego pensando sobre o que mais me causa desconforto no Brasil. Por algum tempo, talvez por apreciar o estudo da economia, tendi a acreditar que os assuntos econômicos me pareciam mais relevantes. Porém os anos foram passando, minhas visões foram amadurecendo e comecei a enxergar uma importância cada vez mais maior em algo que é muito falado, mas talvez não seja tão compreendido e bem dimensionado: a falta de segurança.

Falando assim o leitor pode estar se preparando para mais um daqueles desabafos clichês de alguém que tem medo de ser assaltado ou que fica revoltado com o noticiário constante de crimes bárbaros que quase nunca são solucionados. Mas não, ao meu ver a falta de segurança no Brasil é algo que há muito tempo passou dessa preocupação corriqueira de sofrer um assalto, tendo já ganhado proporções que alteraram com certa profundidade o psicológico coletivo e como a sociedade brasileira se organiza cultural e estruturalmente.

Ao tocar no assunto, alguém já pode se antecipar e dizer: “mas o Brasil sempre foi assim!”. E eu respondo: não, o Brasil nunca foi um país muito ordeiro, mas também nunca chegou a ser o caos e a completa hegemonia do crime como vemos hoje. Basta olhar os números para observar o aumento de crimes violentos nos últimos 50 anos, em especial a partir dos anos 90, com o aprofundamento das políticas socialdemocratas. E se você não gostar muito de números, basta conversar com alguém que viveu da década de 90 para trás. Naquele tempo já havia coisas como assaltos, roubos, insegurança etc, mas nada comparado ao cenário atual. As grandes cidades brasileiras eram muito mais tranquilas, e os interiores mais ainda, completa paz e estabilidade com crimes pontuais que vez ou outra chocavam a população.

Eu nasci no início da década de 90 e, portanto, pude testemunhar o avassalador colapso de nossa liberdade à medida em que o tempo foi passando. De lá para cá, saímos de uma realidade em que praticamente não tínhamos preocupações com o crime, usufruindo de uma paz em ir e vir e desfrutar de lugares públicos, a um contexto radicalmente diferente, em que gastamos considerável parte de nossas rendas para pagar vigilância humana, câmeras, cercas elétricas, alarmes, controles de acesso cada vez mais sofisticados, carros blindados (quem pode), assim como fomos adquirindo todo um padrão de comportamento para nos protegermos de sermos alvos.

A ascensão meteórica do crime na sociedade brasileira mudou nosso comportamento e até a estrutura de nossas cidades, áreas públicas se tornaram subutilizadas e shoppings fechados ganharam um forte impulso, passando a ser pontos de encontro e sociabilidade da população. O brasileiro não para o carro na rua sem olhar desconfiado em todas as direções, não para em um sinal de trânsito sem olhar no retrovisor se há alguma moto se aproximando, não pega um ônibus sem analisar as pessoas ao redor e tentar identificar possíveis ameaças, não deixa um pertence na areia da praia enquanto toma um rápido banho de mar, não deixa que um familiar ande a pé por ser uma área perigosa etc.

Quando um estrangeiro chega aqui, fica impressionado com o tanto de orientações alarmistas que os brasileiros fazem, achando que todo esse medo é exagero. E com frequência pode ser mesmo, mas carrega um fundo de verdade: o brasileiro vive apavorado, e quando alguém acostumado a ser livre chega no país, os residentes tentam passar a ele ou ela todas as restrições de liberdade que deve ter ciência para que se proteja.

Isso tudo já se tornou repetitivo pois já faz mais de 10 anos que se tornou uma realidade a ser aceita e até não questionada, em razão do “espírito da época”, que passou a tratar o crime como um “probleminha de comportamento” que deve ser “administrado” de forma branda e “humanista”. Cenário em que criminosos são tratados como vítimas e vítimas que se revoltam são tratadas como criminosos, uma realidade angustiante para quem busca uma justiça objetiva e comum, dentro da lógica tradicional de que quem prejudica o outro deve ser punido, sistema óbvio que funcionou relativamente bem em todas as civilizações minimamente estáveis.

O fato de o assunto ter se tornado repetitivo e muitos terem até deixado de reclamar é o que me causa mais perplexidade. O brasileiro, como que em um experimento social de adaptação de longo prazo, acostumou-se a ser confinado, aceitou sua tragédia e desistiu de lutar. É como se um homem livre tivesse se tornado escravo e por muitos anos tivesse tentado se rebelar, mas ao ver que nada acontecia, cansou, e aceitou sua triste realidade. Hoje uma pessoa de classe média comum vive em um condomínio de segurança máxima, pega seu carro, e vai de um ponto ao outro sem se expor, pulando de “ilha” em “ilha” para tocar sua vida como se tudo fosse normal, com frequência acreditando que esta é uma vida livre e ordinária de qualquer pessoa que vive em uma sociedade funcional. Se durante esta rotina ela ver alguém sendo assaltado na rua, trata-se de um evento corriqueiro, nada a se preocupar, nem a polícia é mais acionada. É assustador.

Mas o assustador mesmo é que isso não é assustador para grande parte dos brasileiros, pois os mesmos sequer sabem que existe algo diferente. Eu, como muitos que moraram em países ordeiros no exterior, ficamos perplexos com a aceitação geral da população, com a quase total entrega das liberdades a grupos criminosos e até grupos políticos que não confrontam o problema. Por isso é tão difícil a readaptação no Brasil após uma temporada fora. Quando você passa um tempo considerável em um país livre, o retorno ao “confinamento” é avassalador. É claro que isso também varia de pessoa para pessoa, e aqui chegamos ao motivo de eu falar sobre isso, pois este é um relato pessoal, e eu sou um desses que se sente muito mal com esta realidade.

Passados alguns anos de reflexão, entendi que o bem que mais vale para mim é a liberdade de ir e vir, de usufruir o mundo sem estar sempre se sentindo ameaçado, como se estivesse sempre fugindo em um estado de alerta que muito se assemelha a realidades de conflitos bélicos. Hoje em dia viver em uma capital brasileira exige um nível de alerta e mobilização preventiva maior que a de um homem medieval vivendo em um vilarejo pacato e isolado composto por algumas dezenas de pessoas. Lembro-me que os momentos mais felizes da minha vida foram em ocasiões em que pude desfrutar de grande liberdade e segurança em experiências em lugares públicos que tive no exterior: passeios de bicicleta e caminhadas no meio da estrada, acampamentos, voltar de um jantar no meio da noite pelas ruas de uma cidade etc. Coisas que parecem banais, mas têm um valor inestimável.

Imagine que existisse uma empresa brasileira que nos vendesse a mesma sensação de segurança e liberdade que temos em países ordeiros no exterior, como se fosse uma mágica. Você pagaria mensalmente um valor para ter a sensação de um europeu, um americano ou um canadense. Quanto isso custaria? Já passou para pensar? É difícil até de precificar tal serviço, pois reflete um valor imenso e abstrato. Mas tenho certeza que quem pudesse, estaria disposto a arcar com tal despesa, viabilizando uma experiência existencial muito mais rica e estimulante.

Após muito refletir, entendi que o que me fascina no estrangeiro não é tanto a possibilidade de conquistas econômicas, mas sim a liberdade que o cidadão comum perdeu no Brasil. Para quem já experimentou a liberdade, viver em confinamento é uma angústia que até acabamos aceitando, mas nunca realmente superamos. Isto também me traz outras conclusões, de que talvez não queiramos tantas coisas assim, de que não sejamos tão exigentes. Se tivéssemos um país minimamente funcional, com uma justiça previsível e confiável e o cenário da criminalidade controlado, imagino que muitos brasileiros que hoje vivem no exterior cogitariam retornar. Porém a realidade é dura, pois não há previsão para que o Brasil saia desta, devendo o estado de confinamento se prolongar por décadas.

Lembro-me daquela clássica lição de ciência política: para se construir algo bom (como a liberdade) precisamos de décadas ou séculos, mas para se destruir, bastam alguns anos. Não subestimem a possibilidade de a situação piorar ainda mais, como por exemplo com a restrição da liberdade de expressão. Isto pode acontecer de repente, e se consolidar com poucos meses. Sendo que esta é apenas uma das frontes de liberdades civis que o brasileiro pode perder, havendo algumas poucas outras que ainda se sustentam.

Adendo: esta é a realidade de um homem de classe média em uma capital do Nordeste, a situação pode variar muito a depender do gênero, posição geográfica e situação econômica de cada indivíduo.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O resgate do conteúdo sem dopamina

Desde que as redes sociais visualmente atraentes se consolidaram, temos a impressão de que a velha leitura tem tido cada vez menos espaço. É verdade que livros ainda são vendidos e muitos gostam de passar mais de uma hora lendo textos, porém é inegável o espaço avassalador conquistado pelas imagens e vídeos. Eu mesmo sou muito adepto dos vídeos, inclusive sou assinante do YouTube Premium, modalidade de serviço para quem não quer ver comerciais durante o uso da plataforma, além de outras vantagens interessantes.

Apesar de ter me adaptado como consumidor destas grandes plataformas, sempre me senti um pouco desajustado pela quase extinção do “conteúdo denso”, essa coisa geralmente escrita que exige tempo, paciência, processamento e reflexão. Como uma pessoa que gosta de tanto ler como escrever, é um desconforto ser obrigado a se ajustar nas limitações de caracteres das redes sociais. Por esta razão é tão prazeroso ter um blog. Apesar de praticamente não ter visibilidade, poucas coisas parecem ser tão saudáveis para alma do que a possibilidade de se expressar livremente por meio das palavras escritas.

Não sei como o leitor se sente, mas sou daquelas pessoas que precisam se expressar de alguma forma, e a forma que melhor me conforta é a escrita. Na verdade, tenho a sensação de que todos os seres-humanos necessitam de alguma forma expressar o que sentem e o que são, entretanto, esta coisa pode ser feita de variadas maneiras: pela pintura, teatro, música, gastronomia, esportes, trabalho e até, pasmem, pelo falatório de um bar estimulado pelo consumo de álcool ou qualquer substância com poderes de desinibir os indivíduos. Provavelmente algum psicólogo já falou sobre isso, deve haver alguma teoria por trás da ideia de que pessoas sem canais de livre expressão podem apresentar uma série de problemas psíquicos que tendem a se tornar um grande mal.

Seres vivos – e aqui falamos de humanos – carregam um ímpeto vital que os empurram para a ação e a comunicação. Não adianta você querer ficar parado, inerte, recusando viver. A vida lhe empurra, e não aceitar este empurrão é como optar por um vagaroso processo suicida. É proibido ficar parado. Como costumo pensar e dizer: mesmo que você não saiba o que fazer, faça alguma coisa. Movimente-se. Tenha apetite pela vida, por caminhar, aprender, crescer, e se aventurar. Você já está aqui, mergulhe no turbilhão da existência e encontre seu caminho.

Expressar-se é uma consequência natural daquele que abraça a vida, daquele que deseja viver. E para aqueles que preferem se expressar de forma mais densa, este mundo que se tornou demasiado superficial se torna um desafio. Mas abraçar desafios também faz parte da aventura. Outro dia uma pessoa participando de um longo podcast disse que estava surpresa com a audiência deste modelo de conteúdo, acreditando que sim, há espaço para longas horas de diálogos sobre assuntos complexos. Esta observação me fez enxergar o cenário com mais otimismo, imaginando que talvez um dia muita gente se canse do hiper estímulo das redes e procure um conteúdo mais lento e denso como este simples texto. É verdade que cada modalidade tem suas vantagens e desvantagens, mas espero que possamos nos recordar dos incomparáveis prazeres de uma boa leitura além das tempestades dopaminérgicas das redes sociais.