sexta-feira, 16 de novembro de 2018

O ser-humano é imperfeito e vacilante, e isto deveria nos dizer muita coisa


Durante a maior parte da história de nossa civilização, as pessoas tinham plena consciência de que o ser-humano era uma criatura limitada. A doutrina do pecado original, tanto familiar aos cristãos, formava a base imaginária que sustentava uma posição de humildade e de uma visão de piedade sobre o mundo. Somos pecadores, somos miseráveis, somos imperfeitos e, portanto, devemos agir com calma e prudência. Por mais que houvesse barbaridades, elas eram julgadas por esta visão, além de uma consciência da existência de um ser supremo que vigiava tudo que fazíamos.

Com o advento do mundo moderno e do cientificismo, esta estrutura imaginativa foi substituída por uma crença demasiada na razão metódica, que sugeria a elevação do homem ao patamar de super-poderoso, um ser que tudo poderia fazer e tudo poderia entender, abolindo de seu dicionário conceitos simples e tradicionais como "mistério". A idéia de "mistério" para o homem moderno é uma idéia de mediocridade, devendo ser superada para que a espécie humana busque compreender a estrutura do universo, revelando o que "instituições retrógradas" - como a Igreja - impediam de ser revelado. Lembro aqui que cientificismo não quer dizer propriamente ciência natural, aquela prática muito comum entre padres e os fundadores das universidades ocidentais. Cientificismo é tomado aqui como uma espécie de ideologia, um embotamento mental resultado da elevação da ciência a uma condição de fonte monopolista de toda verdade e conhecimento (o que explica o enfraquecimento da filosofia clássica nos últimos trezentos anos).

Esta quebra de mentalidade se alastrou pela civilização, deixamos Deus de lado, negamos as limitações do homem e o colocamos como o grande redentor da espécie. Transformar este planeta em um paraíso não seria tão difícil assim com grandes mentes no comando. Tal crença, aliada à consagração do materialismo tanto por marxistas quanto por alguns burgueses, conduziu-nos a ideologias políticas que resultariam em graves instabilidades, tendo como pontos máximos as duas grandes guerras mundiais do século XX, além da revolução bolchevique de 1918. Para o historiador Arnold Toynbee (1889-1975), esta foi a era da desordem. Nunca antes na história humana a vida foi tratada de forma tão insignificante, vista como um empecilho para a construção de mundos "perfeitos" que desconsideravam presunçosamente todas as grandes lições da história, assim como a compreensão da natureza humana, entendida com muito gênio e sacrifício ao longo de vários séculos. Milhões de vidas foram ceifadas na Europa, em especial na Alemanha e na Rússia, e mais tarde também na Ásia, tendo como protagonista a China de Mao Tsé-Tung (1983-1976). 

Mesmo com toda esta barbárie do século XX, é comum ainda termos a idade média como a principal época da "escuridão" e do sofrimento humano, e esta visão parte muito mais por iniciativas propagandistas modernas do que pela realidade histórica registrada. É assustador como o terrores do comunismo, por exemplo, são tratados com tanta brandura por pessoas que se autoproclamam "humanistas", como se esta ideologia só precisasse de alguns reparos para que fosse colocada em funcionamento de forma mais satisfatória. A verdade é que, mesmo com todos os fatos históricos observados, ainda esperamos que o homem cure as chagas deste mundo e proporcione o "Céu na Terra". Tal pensamento não só nos reveste de utopia - o que na prática nos idiotiza - como gera um ambiente muito propício à ascensão de tiranos e demagogos que usarão tais equívocos filosóficos para conquistarem o poder. Quando o homem se torna um louco em seu interior, e esta loucura se torna o norte cognitivo das massas, é só questão de tempo para que loucos se tornem governantes.

Ainda hoje, mesmo com a queda de várias destas ideologias, líderes cheios de planos mirabolantes para salvar o mundo ainda são escutados, respeitados e até eleitos para cargos de grandes responsabilidades. O que podemos esperar é que aqueles que ainda preservam a sanidade, possam perceber que contar com a salvação da humanidade pela própria humanidade é uma tremenda armadilha, e que o resultado tende a ser muito pior do que a mera manutenção da ordem, da justiça e da liberdade, no sentido clássico das palavras. Se aceitarmos a realidade e as limitações do homem, podemos lutar por um mundo razoavelmente bom, onde há um alto nível de tolerância e a justiça e a liberdade podem prevalecer, mas se cairmos em armadilhas ideológicas, podemos perder tudo isto de uma só vez. Nas palavras de Friedrich Hölderlin (1770-1843): "O que sempre fez do estado um verdadeiro inferno foram justamente as tentativas de torná-lo um paraíso". Tenhamos em mente, antes de qualquer coisa, que não somos Deuses, e temos muito o que aprender. Apenas isto já seria suficiente para acalmar os ânimos de um mundo em constante e exaustiva ebulição.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Porque deixei de ser vegetariano



Antes de discorrer sobre os motivos que me levaram a abandonar três anos como vegetariano, devo dizer que provavelmente frustrarei alguns "inimigos" do vegetarianismo que esperam alguma descrição catastrófica dos efeitos biologicamente destrutivos de não se alimentar de carne. Estes amigos buscam vorazmente relatos de indivíduos que ficaram "doentes" após um tempo adotando uma dieta vegetariana. Bom, este não é meu caso, não fiquei "doente" e não foi por motivos de saúde que abandonei este estilo de vida.

Devo destacar, inclusive, as vantagens de ser vegetariano. Uma dieta sem carne, conduzida por alguém bem educado sobre alimentação, pode melhorar e muito a qualidade de vida, a saúde e a performance nos esportes. Normalmente os vegetarianos bem empenhados acabam tendo uma alimentação muito superior à de um cidadão médio, uma vez que reconhecem suas restrições e aprendem a se alimentar melhor, tendo uma relação mais íntima com o que ingerem, buscando mais informações sobre os benefícios e malefícios de cada alimento.

Portanto, minha decisão por deixar o vegetarianismo não é de cunho biológico, não tive nenhum problema físico ao deixar de comer carne, pelo contrário, tive muitos ganhos, como alta imunidade contra doenças, bom sono, melhora nos processos digestivos etc. Entretanto devo deixar o alerta aos aventureiros, para ter este estilo de vida não basta deixar de comer carne, você deverá saber substituir sua velha dieta e passar a comer muitos alimentos com os quais não tinha tanta familiaridade, como frutas e verduras que não costumavam fazer parte do seu dia a dia.

Pois bem, o que me trouxe de volta para a alimentação "comum" foi um aspecto cultural, mais precisamente algo que passei a chamar de "custo social". Alguém que pensa em se tornar vegetariano no Brasil deve ter consciência de que vive em uma cultura onde o consumo de carne está profundamente arraigado, de forma tal que muitas tradições e costumes estão vinculados a esta prática, havendo um alto teor de questões de sociabilidade envolvidas em qualquer decisão que gire em torno da alimentação.

A alimentação não é só uma decisão sobre o que vamos ingerir para nutrir nosso corpo, mas algo que remete fortemente à nossa participação na sociedade. Coisas como "tomar um café" ou "fazer um churrasco" no Brasil significam muito mais que um "café" ou um "churrasco", são códigos de convivência intimamente ligados à nossa história e à nossa identidade como povo. Em alguns países, um estrangeiro que se recusa a experimentar a comida local automaticamente é rejeitado, como alguém que não se pode confiar, ou mesmo como um inimigo. Por mais que preguemos uma sociedade tolerante, poucas coisas são mais frustrantes do que receber alguém na sua casa e esta pessoa ter um tipo de alimentação completamente diferente da sua, você tem dificuldades em saber o que pode servir ou como agradar este visitante. Quando esta pessoa tem um discurso moralista, isto pode ficar ainda mais inconveniente.

Quando um brasileiro decide ser vegetariano, ele deve ter consciência de que está promovendo uma violenta ruptura com a cultura em que está inserido. Isto pode soar até como uma novidade para alguns, mas isso acontece porque tentamos acreditar que estamos em um mundo onde as escolhas são muito livres e todos devem acatar o que decidimos fazer com nossas próprias vidas. Tal idéia pode ser verdade na teoria, mas a realidade prática não se importa muito com teorias. A tendência para uma pessoa "excêntrica" é que ela seja aos poucos excluída daquele núcleo cultural em que determinada população vive, núcleo cultural que não adianta ser ignorado, pois costumes alimentares são parte indispensável na composição das convenções de uma nação, e o consumo de carne faz parte da história do Brasil.

Em outras palavras, ao decidir por um estilo de vida vegetariano, você está decidindo por uma ruptura cultural, e isto pode ter como consequência uma gradual exclusão social. É claro que é possível buscar outras pessoas com um estilo de vida semelhante e tentar se relacionar (principalmente se você estiver em uma cidade grande), mas isto provavelmente resultará em uma esfera de interações muito limitada, o que moldará sua vida e seu destino de forma decisiva. Pode parecer exagero, mas a decisão por um estilo de vida alimentar tem impactos tão fortes quanto à conversão a uma determinada religião, ou mesmo à escolha de uma carreira profissional. É coisa séria, muito séria.

Além disso tudo, particularmente também acredito que há algo transcendente no compartilhar de uma refeição, algo que não está tanto ao nosso alcance compreender, mas tem tudo a ver com amizade, lealdade, companheirismo e celebração. Partilhar um alimento vai muito além de meramente se alimentar, tendo ligação íntima com a construção de vínculos que podem ser duradouros. Deixar de participar diretamente do churrasco, compartilhando a mesma carne que os outros estão degustando, e ficar no cantinho do evento comendo uma "alternativa" vegetariana, impõe um distanciamento metafísico insuperável entre a maioria e sua conduta particular. Por mais nobre que sejam seus motivos, como proteger os animais, você está implicitamente declarando que não pertence àquele grupo.

Devo deixar claro que não estou dizendo que sou contra o vegetarianismo, apenas penso que aqueles que querem adotar este estilo de vida, devem ter em mente o "custo social" de tal empreitada. Às vezes não é fácil ser um "herege" alimentar, e se você for jovem então, acaba sendo pior ainda, pois jovens tendem a ter uma vida social mais movimentada, e deixar de ter vínculos nesta idade poderá lhe conduzir a uma maturidade solitária. Uma alternativa que deixaria como sugestão, caso alguém queira deixar de comer carne, é reduzir a quantidade consumida deste produto drasticamente, mas não proceder com uma ruptura total com a dieta "comum", desta forma, haverá um meio termo, ideais podem ser alcançados e vínculos sociais podem ser conservados.

Não me arrependo de ter deixado o vegetarianismo, apesar de também achar que o brasileiro come carne demais e deveria aprender a consumir outros grupos alimentares. Voltando a viver nos costumes, reaproximei-me de amigos e familiares, além de fazer novas amizades em situações onde o alimento era protagonista no cenário das interações. Eventos sociais que envolvessem comida nunca mais foram um problema, de forma que minha energia mental (antes preocupada com "o que comer") fosse redirecionada a outros problemas e desafios, como por exemplo ser alguém mais agradável, tolerante e cortês, coisas que exigem certo esforço, disciplina e aprimoramento individual. Portanto, saiba que ser vegetariano tem várias vantagens, mas não esqueça desse negócio chamado "custo social", isto é sem dúvida algo que deve entrar em suas meditações sobre o assunto antes de tomar qualquer decisão.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Se você abrir muito a cabeça, o cérebro pode cair para fora

Estou retornando à minha casa à noite quando passo por um desses grafites urbanos com frases de efeito. Neste, um menino negro tem um balão de diálogo que diz: "O impossível é uma questão de opinião". Como sou desses que gosta de ficar filosofando sozinho no carro, começo a refletir sobre a frase e pensar nas suas consequências cognitivas.

É muito comum em nossos tempos frases de efeito que nos convidam a um certo comportamento questionador, sempre nos incitando a destruir os limites da vida, como se isso nos conduzisse a níveis mais elevados de compreensão e nos diferenciasse das "massas alienadas que estão sempre seguindo padrões". É um convite a ser diferentão, ouvimos isso tanto de gente "cabeça" de esquerda como de empreendedores e coaches entusiastas que estão sempre gritando por aí seus mantras para uma carreira bem sucedida: "pense fora da caixa!", é o que o mundo moderno insiste em nos dizer.

No caso do grafite que vi voltando para casa, a mensagem é bem clara: "não respeite sua noção de impossível". Também poderíamos ler como: "ignore as limitações da realidade". Você quer voar? Voe! Você quer riqueza sem trabalho? Queira! Você tem muitos desejos? Satisfaça-os. Não importa se a vida real é cheia de condições, muitas vezes insuperáveis, você tem todas as possibilidades de subvertê-las, basta querer!

Esta ânsia do homem moderno em destruir os limites foi muito bem observada por G.K. Chesterton, um escritor inglês que, dentre muitas frases célebres, tem uma das minhas favoritas: "Não seja tão mente aberta que seu cérebro caia pra fora". Chesterton lamentava a forma como seus contemporâneos passaram a encarar o mundo e a aquisição de conhecimento, para ele, a vida é feita de contornos, e retirando os contornos, a vida deixa de ser vida.

Não adianta você querer uma zebra sem listras, se ela não tiver listras, ela deixará de ser zebra. Não adianta desejar um leão sem juba, ao perder sua juba, o leão deixa de ser leão. Da mesma maneira, nossa vida é repleta de coisas já estabelecidas, e lutar contra elas é um grande passo a caminho da loucura e da insanidade. E é este um dos grande males que nossa civilização parece estar sofrendo.

O homem medieval buscava melhorar a vida, mas com um enorme respeito às coisas como elas são em seu sentido concreto, já o homem moderno zomba da realidade com extrema arrogância, colocando seus desejos e seu ego no topo das prioridades. O homem medieval era movido pela piedade, o homem moderno é movido pelo apetite.

Basta olhar ao redor e perceberemos que nosso mundo está movido por uma busca insaciável de atender a desejos de um lado, e uma insanidade irrefreável do outro, sendo esta campanha permanente de relativizar a realidade uma das principais causas da desordem interna que empurra as massas para o precipício. Em outras palavras: o que era apenas um convite para "pensar fora da caixa" se tornou um dos maiores dogmas desta nova religião da loucura e do caos metafísico.

Desconstruir, problematizar, quebrar paradigmas, parece que ninguém mais pode sentar em uma praça em paz e apreciar as coisas como elas são. Ver os velhos tagarelando, os vendedores anunciando suas ofertas, os apressados correndo, os mendigos pedindo esmolas. Nossos jovens estão sendo treinandos para fazerem análises sociológicas profundas das coisas mais banais, e muito comumente eles só reproduzem um monte de clichês e jargões marxistas para justificar algum remédio político que ouviram de um professor ou algum formador de opinião na internet. 

Compreender o mundo como ele é, ao invés de ficar se debatendo contra a realidade, é um dos principais caminhos que levam à sabedoria, assim como a uma vida mais feliz e perene. Revoltar-se contra tudo é abrir os portões a um verdadeiro inferno existencial, alimentando o monstro da insatisfação e cavando a própria cova da inteligência. O sábio não vive de revoltas e utopias, mas de um imenso entendimento de como as coisas funcionam, além de um permanente encantamento com tudo que seus olhos veem, como se os atributos aparentemente mais irrelevantes da existência fossem verdadeiros milagres. 

Abrir tanto a cabeça ou ficar questionando o impossível não lhe levará a um lugar muito mais interessante que esta fantástica aventura onde você já se encontra: a aventura da vida comum, a inigualável experiência de ser mais um. Somos muitos, mas cada um de nós é um milagre, assim como cada contorno que nos é imposto. Nosso tempo é curto, para quê desperdiçá-lo com excentricidades? Amemos as coisas como elas são. Voltarei lá no grafite para apagar a frase "o impossível é uma questão de opinião" e escrever: "o impossível é impossível e pronto". Desculpe se frustrei sua poesia, mas acho que vai ser melhor para você.