Falando assim o leitor pode estar se preparando para mais um daqueles desabafos clichês de alguém que tem medo de ser assaltado ou que fica revoltado com o noticiário constante de crimes bárbaros que quase nunca são solucionados. Mas não, ao meu ver a falta de segurança no Brasil é algo que há muito tempo passou dessa preocupação corriqueira de sofrer um assalto, tendo já ganhado proporções que alteraram com certa profundidade o psicológico coletivo e como a sociedade brasileira se organiza cultural e estruturalmente.
Ao tocar no assunto, alguém já pode se antecipar e dizer: “mas o Brasil sempre foi assim!”. E eu respondo: não, o Brasil nunca foi um país muito ordeiro, mas também nunca chegou a ser o caos e a completa hegemonia do crime como vemos hoje. Basta olhar os números para observar o aumento de crimes violentos nos últimos 50 anos, em especial a partir dos anos 90, com o aprofundamento das políticas socialdemocratas. E se você não gostar muito de números, basta conversar com alguém que viveu da década de 90 para trás. Naquele tempo já havia coisas como assaltos, roubos, insegurança etc, mas nada comparado ao cenário atual. As grandes cidades brasileiras eram muito mais tranquilas, e os interiores mais ainda, completa paz e estabilidade com crimes pontuais que vez ou outra chocavam a população.
Eu nasci no início da década de 90 e, portanto, pude testemunhar o avassalador colapso de nossa liberdade à medida em que o tempo foi passando. De lá para cá, saímos de uma realidade em que praticamente não tínhamos preocupações com o crime, usufruindo de uma paz em ir e vir e desfrutar de lugares públicos, a um contexto radicalmente diferente, em que gastamos considerável parte de nossas rendas para pagar vigilância humana, câmeras, cercas elétricas, alarmes, controles de acesso cada vez mais sofisticados, carros blindados (quem pode), assim como fomos adquirindo todo um padrão de comportamento para nos protegermos de sermos alvos.
A ascensão meteórica do crime na sociedade brasileira mudou nosso comportamento e até a estrutura de nossas cidades, áreas públicas se tornaram subutilizadas e shoppings fechados ganharam um forte impulso, passando a ser pontos de encontro e sociabilidade da população. O brasileiro não para o carro na rua sem olhar desconfiado em todas as direções, não para em um sinal de trânsito sem olhar no retrovisor se há alguma moto se aproximando, não pega um ônibus sem analisar as pessoas ao redor e tentar identificar possíveis ameaças, não deixa um pertence na areia da praia enquanto toma um rápido banho de mar, não deixa que um familiar ande a pé por ser uma área perigosa etc.
Quando um estrangeiro chega aqui, fica impressionado com o tanto de orientações alarmistas que os brasileiros fazem, achando que todo esse medo é exagero. E com frequência pode ser mesmo, mas carrega um fundo de verdade: o brasileiro vive apavorado, e quando alguém acostumado a ser livre chega no país, os residentes tentam passar a ele ou ela todas as restrições de liberdade que deve ter ciência para que se proteja.
Isso tudo já se tornou repetitivo pois já faz mais de 10 anos que se tornou uma realidade a ser aceita e até não questionada, em razão do “espírito da época”, que passou a tratar o crime como um “probleminha de comportamento” que deve ser “administrado” de forma branda e “humanista”. Cenário em que criminosos são tratados como vítimas e vítimas que se revoltam são tratadas como criminosos, uma realidade angustiante para quem busca uma justiça objetiva e comum, dentro da lógica tradicional de que quem prejudica o outro deve ser punido, sistema óbvio que funcionou relativamente bem em todas as civilizações minimamente estáveis.
O fato de o assunto ter se tornado repetitivo e muitos terem até deixado de reclamar é o que me causa mais perplexidade. O brasileiro, como que em um experimento social de adaptação de longo prazo, acostumou-se a ser confinado, aceitou sua tragédia e desistiu de lutar. É como se um homem livre tivesse se tornado escravo e por muitos anos tivesse tentado se rebelar, mas ao ver que nada acontecia, cansou, e aceitou sua triste realidade. Hoje uma pessoa de classe média comum vive em um condomínio de segurança máxima, pega seu carro, e vai de um ponto ao outro sem se expor, pulando de “ilha” em “ilha” para tocar sua vida como se tudo fosse normal, com frequência acreditando que esta é uma vida livre e ordinária de qualquer pessoa que vive em uma sociedade funcional. Se durante esta rotina ela ver alguém sendo assaltado na rua, trata-se de um evento corriqueiro, nada a se preocupar, nem a polícia é mais acionada. É assustador.
Mas o assustador mesmo é que isso não é assustador para grande parte dos brasileiros, pois os mesmos sequer sabem que existe algo diferente. Eu, como muitos que moraram em países ordeiros no exterior, ficamos perplexos com a aceitação geral da população, com a quase total entrega das liberdades a grupos criminosos e até grupos políticos que não confrontam o problema. Por isso é tão difícil a readaptação no Brasil após uma temporada fora. Quando você passa um tempo considerável em um país livre, o retorno ao “confinamento” é avassalador. É claro que isso também varia de pessoa para pessoa, e aqui chegamos ao motivo de eu falar sobre isso, pois este é um relato pessoal, e eu sou um desses que se sente muito mal com esta realidade.
Passados alguns anos de reflexão, entendi que o bem que mais vale para mim é a liberdade de ir e vir, de usufruir o mundo sem estar sempre se sentindo ameaçado, como se estivesse sempre fugindo em um estado de alerta que muito se assemelha a realidades de conflitos bélicos. Hoje em dia viver em uma capital brasileira exige um nível de alerta e mobilização preventiva maior que a de um homem medieval vivendo em um vilarejo pacato e isolado composto por algumas dezenas de pessoas. Lembro-me que os momentos mais felizes da minha vida foram em ocasiões em que pude desfrutar de grande liberdade e segurança em experiências em lugares públicos que tive no exterior: passeios de bicicleta e caminhadas no meio da estrada, acampamentos, voltar de um jantar no meio da noite pelas ruas de uma cidade etc. Coisas que parecem banais, mas têm um valor inestimável.
Imagine que existisse uma empresa brasileira que nos vendesse a mesma sensação de segurança e liberdade que temos em países ordeiros no exterior, como se fosse uma mágica. Você pagaria mensalmente um valor para ter a sensação de um europeu, um americano ou um canadense. Quanto isso custaria? Já passou para pensar? É difícil até de precificar tal serviço, pois reflete um valor imenso e abstrato. Mas tenho certeza que quem pudesse, estaria disposto a arcar com tal despesa, viabilizando uma experiência existencial muito mais rica e estimulante.
Após muito refletir, entendi que o que me fascina no estrangeiro não é tanto a possibilidade de conquistas econômicas, mas sim a liberdade que o cidadão comum perdeu no Brasil. Para quem já experimentou a liberdade, viver em confinamento é uma angústia que até acabamos aceitando, mas nunca realmente superamos. Isto também me traz outras conclusões, de que talvez não queiramos tantas coisas assim, de que não sejamos tão exigentes. Se tivéssemos um país minimamente funcional, com uma justiça previsível e confiável e o cenário da criminalidade controlado, imagino que muitos brasileiros que hoje vivem no exterior cogitariam retornar. Porém a realidade é dura, pois não há previsão para que o Brasil saia desta, devendo o estado de confinamento se prolongar por décadas.
Lembro-me daquela clássica lição de ciência política: para se construir algo bom (como a liberdade) precisamos de décadas ou séculos, mas para se destruir, bastam alguns anos. Não subestimem a possibilidade de a situação piorar ainda mais, como por exemplo com a restrição da liberdade de expressão. Isto pode acontecer de repente, e se consolidar com poucos meses. Sendo que esta é apenas uma das frontes de liberdades civis que o brasileiro pode perder, havendo algumas poucas outras que ainda se sustentam.
Adendo: esta é a realidade de um homem de classe média em uma capital do Nordeste, a situação pode variar muito a depender do gênero, posição geográfica e situação econômica de cada indivíduo.
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