domingo, 24 de março de 2024

O que aprendi trabalhando com pessoas especiais

Trabalhar todos os dias com pessoas especiais é uma experiência que muda muitas de nossas referências enquanto seres-humanos. Uma destas referências é a noção de valor e capacidade de cada pessoa em si. Durante nossas vidas é comum ouvirmos falar de indivíduos que não se achavam capazes de ter uma rotina funcional, que acreditavam que por uma tragédia do destino não foram agraciados com praticamente nenhuma habilidade, que são incapazes e não entendem porque habitam este mundo. Em tempos de redes sociais, onde por todo lado a ideia de indivíduos perfeitos e conquistadores, idealizadores de grandes projetos, é vendida como se fosse praticamente o único caminho para a grandeza humana, este desconforto da “pessoa comum” é ainda mais presente e profundo.

Isto é tudo uma grande bobagem. Uma ficção para atrair os desocupados e entediados, assim como vender ideias de felicidades não apenas ilusórias, como grosseiras e vulgares. Digo isto porque o fato é que há uma diversidade avassaladora de boas maneiras de se viver esta vida e os falatórios populares estão longe de conseguirem abarcar todas as combinações existenciais disponíveis ao nosso redor. No campo do valor humano, todos podem se sentir especiais apenas por existirem, pois, a mera existência já é um acontecimento especial e extraordinário.

Não existe absolutamente ninguém sem valor, sem habilidades e sem capacidades incríveis. Se você colocar um pássaro dentro da água, ele não nadará porque é um incompetente, preguiçoso ou incapaz, ele não nadará porque sua natureza não pertence àquele ambiente, ele foi feito para o ar, para o livre movimento de suas asas rasgando os céus e coordenando seus movimentos ao soprar dos ventos.

Se você por algum momento achar que não tem tanto valor, que não é tão capaz, que não sabe porque está aqui, pare imediatamente. Você provavelmente está no lugar errado, está fazendo escolhas erradas e está entrando em um ciclo de enganos que traem sua própria natureza. Concentre-se no seu “eu”, entenda quem você é e siga sua procura sem pressa. Em algum momento encontrará seu lugar, e ficará surpreso com sua capacidade, criatividade, poder e destreza para fazer tudo que se propõe.

Imagine um homem primitivo que recebe um martelo sem ter a mínima ideia para que serve. Ele tenta cortar um pão com o martelo, tenta caçar um cervo, tenta coletar água no rio, e tudo se torna um fracasso com aquela ferramenta imprestável simplesmente porque ele não sabe para o que ela serve. Até que certo dia, meio frustrado e desesperançoso, o homem usa seu martelo marretando uma rocha, que se quebra em pedaços afiados. Ao ver a rocha quebrada e as novas formas à sua frente, ele começa a perceber a utilidade daquela poderosa ferramenta. Com o tempo ele passa a encontrar uma infinidade de utilidades para a mesma, passando a executar todo tipo de projeto que o ajuda a melhorar de vida, além de se proteger de possíveis ameaças.

Somos como homens primitivos agraciados com vocações fantásticas, porém estas vocações não nos são reveladas, nós temos que adentrar uma jornada de autoconhecimento e experiência própria para conseguir descobri-las. Este é um processo que requer calma e paciência, e talvez este seja uma das maiores dificuldades de nossa apressada geração.


Mas o que tudo isso tem a ver com pessoas com necessidades especiais?

Simples, absolutamente todas elas também têm condições de contribuir e realizar uma série de coisas, mesmo com todas as suas aparentes “limitações”. Trabalhando com dezenas de pessoas com síndrome de down, autistas, entre outras condições mentais, isto tudo ficou muito mais claro para mim. A ideia de que absolutamente todo ser-humano tem um valor inestimável.

As pessoas com necessidades especiais que vivem em comunidades Camphill ao redor do mundo são simplesmente impressionantes. Com anos de prática e boa educação, tornam-se bons padeiros, fazendeiros, cozinheiros, comunicadores, artistas, entre outras infinidades de ocupações que nos deparamos ao viver em um lugar como esse. Todas as vezes que vi uma pessoa com alto grau de autismo executando algum trabalho difícil, fiquei completamente envergonhado e constrangido ao lembrar de todas as vezes que ousei reclamar da minha vida e de minhas obrigações, e mais ainda das vezes em que tive alguma crise de autoestima e questionei minhas próprias capacidades de viver neste mundo. É simplesmente um choque de realidade, algo até difícil de explicar a quem não vive aqui, e por isso que sempre digo à minha esposa que Camphill é um negócio que “só vendo para acreditar”.

Portanto a maior lição de vida para mim ao trabalhar com estas pessoas é que absolutamente todos nós somos capazes e valiosos, e a junção entre estar em lugares errados e a venda de vidas artificiais que vemos na mídia e redes sociais nos levam a estados mentais de compreensões completamente equivocadas sobre a realidade da existência humana, levando-nos a conclusões mais equivocadas ainda sobre nosso valor como indivíduos.

Este mundo é muito amplo, complexo e cheio de possibilidades. Nunca lhe permita acreditar que sua existência tem menos valor que a de outros, ou que não há nada para você. Possivelmente o único problema é que você na verdade sequer se encontrou ainda, e que vem se enganando há anos, ou talvez décadas, afastando-se da sua própria realidade e, consequentemente, de onde deve estar.

sábado, 2 de dezembro de 2023

A libertadora certeza de que não sei de nada

Desde o fim do tempo de escola lembro que passei a me interessar mais por entender como o mundo funcionava. Não tanto o mundo natural, mas o social. Isto me aproximou das ideias políticas, sociais e econômicas, além da história, que diferentemente do que acontecia no período escolar, passou a me atrair de uma forma mais orgânica, de um interesse que realmente vinha do meu ser, e não de um professor ou um ambiente de sala de aula.

Neste tempo, mergulhei principalmente no que chamo de “esquerdosfera”, todo o universo de interpretação dos fatos sociais e históricos sob a ótica da esquerda política e acadêmica, que entendo como tendo sua grande base fundamentada por Marx e Rousseau. Este é o caminho natural de qualquer jovem que se interessa por entender a grande estrutura social em que vive, e é por isso que a grande maioria das pessoas que mergulham um pouco no assunto se tornam o que chamaríamos de “esquerdistas”. A interpretação do mundo pela ótica destas ideias é extremamente atraente, simples de entender e fornecedora de muitas respostas. E como queremos respostas quando estamos curiosos!

Após este período de iniciação passei a me sentir muito seguro sobre vários assuntos e estava mergulhado em idealismo. Porém não é da minha personalidade se acomodar na “segurança”. Aproveitando o primeiro ano na faculdade de economia, passei a me interessar por pensadores que atacavam frontalmente o que eu acreditava, afinal eles deveriam existir, não é mesmo? Foi então que conheci os liberais, cheios de argumentos e ideias muito interessantes que colocavam em dúvida tudo que acreditava. De repente Marx e Rousseau não eram tão grandes assim, e Adam Smith e Hobbes passavam a chamar muita atenção.

Eu poderia passar horas escrevendo sobre todo este conflito de ideias que passei a viver nesta época, mas este não é o assunto do texto. O ponto importante foi que nesta época eu me deparei com uma ideia muito marcante encontrada na mentalidade de muitos liberais, mas de um em especial, Friedrich Hayek, que não era nada mais que uma simples constatação: o conhecimento está disperso na sociedade e indivíduos sabem pouco, muito pouco.

Este pensamento foi um meteoro na minha jornada de compreensão do mundo. Colocado da forma acima, parece simples, mas na verdade ele traz uma série de reflexões sobre o mundo moderno e a “pretensão do conhecimento”, como o próprio Hayek chamava, chegando a escrever um livro intitulado “A Arrogância Fatal”, que em outras coisas descrevia como políticos e planejadores sociais tentavam solucionar os problemas humanos e sociais e quase sempre fracassavam em suas empreitadas, não apenas não solucionando os problemas, como os agravando.

E Hayek não era qualquer pensador, era um ganhador de Prêmio Nobel de Economia. Nada mais nada menos que um vencedor de Prêmio Nobel tinha como uma de suas grandes mensagens, em outras palavras, o seguinte: nós não sabemos nada! É claro que ele não queria dizer que não sabemos nada literalmente, o que ele queria dizer é que vivemos em um mundo complexo, e muitas das ideias decoradas de sofisticado racionalismo não são mais que especulações ou uma parte muito superficial do conhecimento de determinado assunto. Hayek enxergava em nosso tempo uma certa arrogância, uma tendência irresistível das pessoas em querem ser especialistas em assunto que nem os especialistas dominam completamente.

Partindo desta premissa, passei a perceber que aquela máxima popularmente conhecida fazia muito sentido: “quanto mais busco o saber, menos sei”. Ao analisar os assuntos que me dispus a me aprofundar durante toda a minha vida, percebi que quanto mais adentrava naquele campo, mais me sentia ignorante, mais me sentia inseguro sobre a verdade e a exatidão dos fatos. Neste caminho, algo solidificou ainda mais esta ideia em meu íntimo: o estudo da estatística, matéria obrigatória nos cursos de economia. Ao entender como os estudos, pesquisas e levantamento de dados são feitos, ficou ainda mais claro para mim como tudo é tão frágil, tão aberto a interpretações e manipulações, e como nossa sociedade neste século XXI se tornou um show de horrores estatísticos com pessoas de todos os tipos usando dados soltos sobre determinados assuntos para “provarem” seus pontos e posarem de detentoras do conhecimento.

Mais recentemente fiquei estarrecido com a pandemia de Covid-19 que transformou a “ciência” em uma ferramenta de embate político. Milhares de pessoas que mal sabem descrever o que é ciência e método científico, passando a dizer que “acreditam na ciência”, como se a ciência fosse uma fonte de respostas seguras e imutáveis que devem ser assimiladas e aceitas sem questionamentos. Que sacrilégio. Ora, a grande característica da investigação científica é justamente o ceticismo, a insegurança, a cautela nas observações e processamento dos dados. A ciência é tudo de incerteza e praticamente nada de segurança. Conclusões científicas seguras somente são consideradas seguras após um grande período de aceitação unânime, e ainda assim qualquer cientista minimamente honesto sabe que a mais segura das conclusões pode ser desafiada, questionada e refutada, e foi assim que a ciência se desenvolveu durante seus séculos mais nobres em nossa história. Como uma grande arena de batalha, em que visões aceitas eram refutadas e substituídas do dia para a noite. A instabilidade e a imprevisibilidade foram as bases do modelo científico moderno, e foi justamente seu caráter incerto que o tornou alvo de ataques por parte daqueles que desejavam um mundo estável baseado nos preceitos e tradições religiosas.

Então como, diante de todos esses fatos, políticos e pessoas aleatórias sem nenhuma formação científica passaram a dizer que “apoiam a ciência”? Ora, se você apoia a ciência você apoia a incerteza! E não apenas isso, em geral o que observo em nossos dias é uma pretensão do conhecimento implacável a avassaladora nos mais diferentes campos: nutrição, fármacos, atividades físicas, psicologia etc etc. As pessoas hoje em dia estão achando que encontraram as respostas para tudo e que uma está mais certa que a outra. Parece um grande hospício de senhores e senhoras certezas.

Entendam: vocês não sabem de nada! Este mundo e a maioria dos assuntos que vocês discutem é extremamente complexo, as variáveis são muitas, a previsibilidade é quase inexistente, e este é o mundo como ele é. Este lugar incerto que está mais para uma grande aventura, cheia de surpresas que moldarão seu caráter em questão de horas. Libertem-se! Libertem-se da pretensão do conhecimento! Tirem este fardo de suas costas e vivam uma vida leve! Sejam humildes! Abracem o desconhecido! Digam para si mesmos: eu sei pouco, muito pouco, e está tudo bem!

Como é libertador aceitar a imensidão de variáveis desde mundo, do ser-humano, das sociedades humanas, da biologia, da química, da história, da psicologia, da astronomia. Como é fascinante saber tão pouco e poder investigar os fatos sem querer uma resposta final para tudo. A vida é uma grande incerteza, e é nesta incerteza que nos entregamos e mergulhamos na maravilhosa obra do criador. Se ele quisesse que soubéssemos tudo, provavelmente nos faria diferentes, não tão pequenos e limitados.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Nossa vida em Camphill Village Copake


Após alguns meses desde o último post deste blog, retorno para contar um pouco da experiência que eu e minha esposa, Iasmim, estamos vivendo desde que deixamos o Brasil para passar uma temporada no EUA. Escrevo neste momento de nosso aconchegante quarto em Tamarack, uma das várias casas do Camphill Village Copake, a maior comunidade Camphill da América do Norte, onde vivem cerca de 235 pessoas distribuídas em cerca de 300 hectares de lindas terras ao norte do estado de Nova York.

Desde que chegamos aqui ficamos impressionados com o tamanho e a infraestrutura deste Camphill, de dimensões muito diferentes das do que vivi na Escócia em 2011 e 2012. São várias casas, vários workshops, clínica médica, centro administrativo, centro de convivência com café e loja, fazenda com grande produção diária de carne e laticínios, centro de eventos, todo tipo de maquinário para produção agropecuária, campos férteis para agricultura e tudo que podemos imaginar de necessário para uma comunidade vibrante e praticamente autossustentável.

Para quem é novo em meu blog e não viu outros posts, uma comunidade Camphill é um lugar criado para a inclusão social e profissional de pessoas com necessidades especiais. Essas pessoas podem viver aqui a vida inteira e conquistam um nível de autonomia e dignidade que sequer conseguimos imaginar muito bem no Brasil. Nós vivemos em uma casa com 5 pessoas especiais de diferentes diagnósticos.


Como as experiências que temos no Brasil com pessoas especiais costumam ser raras e até pobres, é difícil explicar a um brasileiro a realidade de uma comunidade Camphill, um lugar incrível que só conseguimos conceber realmente quando estamos nele. Viver e trabalhar com essas pessoas é extremamente gratificante, estimulante e divertido. E é por isso que cada vez mais brasileiros vão passar uma temporada em uma comunidade Camphill ao redor do mundo. Aqui em Copake, além de mim e Iasmim, temos mais 3 brasileiros. Porém eles vêm e vão, e muitos passaram por aqui em outros anos.

Todos que se inscrevem para viver aqui e são aceitos, são alocados em algum local de trabalho. No meu caso eu me tornei um fazendeiro integral, trabalhando na fazenda tanto de manhã quanto à tarde. Um trabalho desafiador que tenho me identificado cada vez mais, havendo sempre algo novo para aprender todos os dias. Já a Iasmim foi alocada em duas posições diferentes, pela manhã ela cuida da casa e geralmente faz almoço, e pela tarde ela trabalha em um workshop chamado “Estate”. Esta é um workshop difícil de explicar aos brasileiros, mas no geral é ligado a uma longa lista de trabalhos ao ar livre, como corte de grama, corte de madeira com serra elétrica, armazenamento de madeira para o inverno, produção de Maple Syrup, e serviços que exigem ação física e operação de máquinas.


Além do trabalho em nossos workshops, também trabalhamos na casa onde moramos, tanto com atividades domésticas comuns como limpeza e preparação de refeições, tanto com os cuidados aos residentes especiais. Em uma comunidade Camphill aprendemos um pouco de tudo, e é por isso que considero este local um dos melhores lugares para alguém se desenvolver como ser-humano. Este é um lugar da prática e você está sempre com as mãos e a mente ocupadas com diferentes tarefas. Em verdade muitos brasileiros que chegam aqui acostumados com uma vida de estudos ou trabalho em escritório, geralmente contando as horas para irem para casa, ficam impressionados com o quanto se desenvolvem e o tanto de coisas que podem fazer durante um dia.

Além de uma vida muito ocupada com todas as responsabilidades que lhe são atribuídas, quem vive e trabalha em Copake usufrui de um cenário natural exuberante de morros, florestas, rios, riachos, lagos e animais. O contato com a natureza é total e a qualidade de vida imensurável, totalmente diferente da realidade urbana de se viver em uma grande metrópole brasileira, como Fortaleza, de onde viemos. Desde que chegamos aqui nossa saúde nunca foi tão boa. A minha sempre foi boa, mas melhorou ainda mais. Já Iasmim praticamente se curou de uma série de problemas pequenos que tinha, como gripes frequentes, crises alérgicas, entre outras coisas que eram um incômodo constante no Brasil.

Estamos nos aproximando de completar 6 meses neste lugar incrível e teria muito o que falar sobre o Camphill, a América, nossos passeios na região, entre outros assuntos, mas deixarei tudo isso para próximas oportunidades. Meu objetivo neste post era apenas lhe dar uma breve introdução sobre onde estamos e o que estamos fazendo, e a partir disto poderei puxar mais assuntos. Até breve.


Tamarack, nossa casa

Fim de tarde tirando leite ao ar livre

Desbravando trilhas e cuidando dos animais da fazenda